Líbano | O menino que era vizinho da guerra

Memórias da inocência infantil,

Beirut,
Fevereiro 2018

«Senhoras e senhores, última chamada para o voo BA 149 com destino para Beirut. Os passageiros em falta, queiram, por favor, dirigir-se à porta de embarque A14.» O claro anúncio da partida iminente trazia consigo uma gélida aragem, que assaltava o terminal de Heathrow sem aviso prévio. Os termómetros aproximavam-se dos 0ºC, mas era a ventania que, aliada à excitação habitual, inquietava Migs.

Chegava o autocarro que o conduziria ao avião – parado na vasta imensidão do aeroporto mais movimentado da Europa – e com ele, o conforto do ar condicionado. A amplitude térmica era tão difusa quanto os passageiros prestes a embarcar e esta pluralidade de passaportes era um primeiro sinal do que Beirut reservava.

Já a bordo do Airbus A321 da British Airways, com o vídeo de segurança a meio e o trem a rolar nos taxiways de LHR1, o pequeno Farouq anunciava-se, ainda discretamente, aos demais viajantes. Estaria de regresso a casa, ou pelo menos numa visita à família, dado o passaporte libanês, de que era titular. Porém, os cinco ou seis anos de Farouq adivinhavam-se insuficientes para que ainda concebesse o avião como um lugar estranho e, no mínimo, curioso. Viajava ao lado da sua irmã mais nova e acompanhado pelos pais. Delirava com os constantes e ensurdecedores roncos dos motores. Chamava pela tripulação de bordo e, por vezes, lançava olhares a Migs, na expectativa que a brincadeira tomasse a plena duração do voo. E, com isto, apenas vinte minutos haviam passado e Beirut era apenas, nesse instante, uma miragem.

Museu Beirut
Edifício destruído durante a Guerra Civil Libanesa, hoje em dia convertido em museu

A mais de dez mil metros de altitude, começava-se a contar uma história, construía-se empatia e “ouvia-se” uma vida. O desenrolar de uma mera hora de voo tornara-se propícia a uma inevitável interacção entre ambos, sentados em filas seguidas e entreolhando-se, ao mesmo tempo que fingiam não se ver. Farouq divertia-se e insistia, e nem a chegada do jantar acalmou o irrequieto menino.

Bastaram minutos para que a, então, eleita brincadeira passasse de bestial a entediante, mas nem isso lhe travara os impulsos divertidos. Contudo, o brilho do olhar, as pálpebras dilatadas e a contagiante diversão tornaram-se, subitamente, num espelho do que os seus olhos, frequentemente, recordavam: destruição, guerra e morte. Os seus dedos simulavam armas e os passageiros inimigos. O objectivo era claro. Todos deveriam ser executados. E assim, por mais um bom par de horas, o pequeno rapaz entusiasmava-se. “Matava” a irmã, o assistente de bordo, Migs e todos os que alcançava. Simultaneamente, no touchscreen do seu lugar, rolavam notícias e imagens sangrentas, fruto dos bombardeamentos nos arredores de Damasco e a sua reprodução era instantânea no 15A2.

Na verdade, a possibilidade de saber a proximidade desses acontecimentos do local para onde se dirigia era reduzida. Afinal, era esta a inocência infantil que os seus próprios actos espelhavam, embora as imagens que, forçadamente, se habituara a contemplar lhe persistissem na memória. O pai, visivelmente atrapalhado, esforçava-se por acalmar a euforia. Paralelamente, Migs era “morto” em combate pela segunda vez, à medida que acenava ao pequeno Farouq. Estava declarada guerra aberta! Quantas mais vezes haveria de ser vítima até Beirut?

Nenhuma. Em pleno espaço aéreo turco, algures entre Istanbul e Antalya, haveria de imitar o som de um bombardeamento e subsequentes explosões. Fartara-se da brincadeira e havia descoberto como a terminar de forma rápida e eficaz. Em poucos segundos, fim da guerra. O sono chamava. O cansaço vencera.

Janela Beirut
Marcas da guerra que o tempo ainda não sarou

E remetido para essas imagens, Migs concluía a hora de voo restante até Beirut. Foi o frenesim inocente e ingénuo de uma criança, cujas memórias assentavam em imagens repudiantes de violência, desumanidade, destruição e morte. Foram os olhares frios e apagados de felicidade. Foi o vislumbre de uma geração de infâncias reféns da guerra. 

À chegada, pelos corredores do terminal do Aeroporto Internacional de Beirut – Rafic Hariri, a passos dessincronizados, a distância aumentava, e pelas filas deixaram de se ver. Farouq era a primeira impressão do que o Líbano reservava – um país de contrastes sociais, fortemente marcado pela(s) guerra(s) e desafios geopolíticos que assombraram, assombram e assombrarão o Médio Oriente. Já com um suado carimbo no passaporte (e não é que pensavam que Migs era libanês?), as luzes dos subúrbios de Beirut levavam-no a Achrafieh, o bairro cristão da cidade, onde a cama era, pouco depois da meia-noite, o último passo do dia, que havia começado ao nascer do sol, ainda em Lisboa.

Zaitunay Bay
Zaitunay Bay, uma das zonas mais modernas e cosmopolitas de Beirut

M I G S

1. LHR é o código IATA para London – Heathrow International Airport;
2. 15A corresponde ao assento do avião ocupado por Farouq;

Informações Práticas relacionadas com esta história

  • Os viajantes de nacionalidade portuguesa e brasileira necessitam de visto para entrar e permanecer em território libanês, o qual pode ser obtido em Embaixadas ou Consulados, ou ainda, em postos fronteiriços, nomeadamente no aeroporto internacional de Beirute.
  • A British Airways é apenas uma das muitas companhias aéreas europeias que voam para Beirute. Veja aqui todas as companhias aéreas e ligações a partir da capital libanesa.
  • Farouq é o nome verdadeiro do protagonista desta história e dada a sua proximidade temporal, não publicarei fotografias que identifiquem a pessoa em causa, por razões de segurança e privacidade.

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8 thoughts on “Líbano | O menino que era vizinho da guerra

  1. Prezado Migs, a forma criativa e, porque não dizer, literária, de relatar um simples voo a um lugar de contrastes, transporta o leitor para o local da ação. É texto vibrante, que contagia e emociona! Faz o leitor viajar sem tirar os olhos da tela do computador. Não conheço Beirute e nem tenho interesse em visitar o Líbano. Mas ler seus textos é sempre um grande prazer! Abraços.

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    1. Muito obrigado pelo comentário, mas especialmente pelo elogio enorme! 🙂
      Espero que os textos correspondam sempre às suas expectativas e sejam surpreendentes. O Líbano é um país fascinante, talvez com histórias futuras fique com mais vontade de lá ir espreitar! 😉 Abraço

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  2. Miguel, adorei a tua viagem de avião que me teletransportou como se de um filme se tratasse – Migs e Farouq.
    Excelente!

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    1. Muito obrigado pelo comentário! Fico muito contente que se tenha envolvido e gostado da história 🙂
      O Líbano é mesmo um destino completo e fascinante!

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