Líbano | Um legado impensável no bastião do Hezbollah

Memórias da História passada e futura,

Baalbek,
Fev
ereiro 2018

Anjar já aparecia nos espelhos retrovisores. As montanhas, primeiros vislumbres de território sírio, eram presença assídua e acompanhavam o trajecto pela direita. Era por ali que, certamente, milhares ansiavam cruzar uma fronteira entre a segurança e o perigo, entre a vida e a morte. O percurso até Baalbek previa-se curto, mas repleto de encontros.

Naquele dia soalheiro, o vale de Beqaa vestia-se de cores contrastantes. Um branco manto de neve cobria os cumes no horizonte, um vívido azul coloria o céu limpo e os verdes e amarelos pintavam os terrenos agrícolas que alimentam o Líbano.

A cada meia dúzia de quilómetros, o cenário, aparentemente idílico, era interrompido por vastas concentrações de tendas brancas e translúcidas. A estrada, que serpenteava e rasgava estes extensos campos, era local de passagem contínua de pessoas, animais e mercadorias. Não eram aldeias, não eram vilas e muito menos cidades. As tendas, que se assemelhavam a estufas, albergavam milhares de refugiados sírios que ali aguardavam novidades sobre o futuro. Era uma realidade, até então, televisiva que Migs comprovava a olho nu. Kifah abrandava o ritmo. Sucediam-se controlos policiais, crianças que cruzavam a estrada e rebanhos. Eram sucintos minutos que pareciam longas horas de choque. De interação. De experiência. De luta. De vidas.

À passagem por um dos muitos campos de refugiados (imagem com pouca qualidade por ser um frame de um vídeo e para as pessoas não serem identificadas)

A fresca temperatura de Fevereiro trazia mais crianças aos descampados. Eram rostos e testemunhas de um presente que tornar-se-á História. E era vivendo o quotidiano na ânsia de ver o dia seguinte, com caras marcadas pela guerra, pela destruição e pela morte, que ali se educavam, cresciam e brincavam. Kifah fintava-os lentamente e as efémeras trocas de olhar eram frias, à imagem do ambiente em redor.

Já a escassos minutos de Baalbek, o caminho endurecia, não pelo asfalto, mas pela propaganda que persistia em todos os postes de iluminação pública dos mais pobres vilarejos do país. Baalbek era habitualmente descrita como a cidade-sede do Hezbollah – um partido político com assento parlamentar no Líbano, mas com rótulo de organização terrorista aos olhos Ocidentais. Não era, por isso, de estranhar que naquela região concentrasse uma substancial parte dos seus votos, assentes em promessas alegadamente intimidatórias, vagas e vãs.

Baalbek, por outro lado, assumia-se como o tesouro patrimonial e histórico de uma nação esquecida pelos atentos olhos do turismo. Mas nem por isso, os quilómetros percorridos pela entrada na cidade permitiam adivinhar tamanha surpresa, que ali os aguardava. Faltavam indicações, as estradas estavam esburacadas e os edifícios decrépitos. Migs sabia que algures naquela terra, talvez escondidas pela pouco atractiva avenida central, situavam-se as soberbas ruínas romanas! Mas a cara principal eram os infindáveis cartazes com mensagens políticas que Kifah ajudava a decifrar. Sentiam a essência xiita do povo e do local, com os minaretes da mesquita central de Baalbek a erguerem-se ao longe e sobrepondo-se a qualquer coluna ou templo greco-romano.

Após uma breve paragem ainda “às portas da cidade”, ao fundo de uma estreita rua em obras, subia em direcção ao céu, uma alta e majestosa muralha. O complexo arqueológico dispunha de uma vista especial para a cordilheira que dividia o país, em duas metades muito distintas entre si, e ao entrar naquelas portas, Migs tinha a certeza que eram as mais impressionantes ruínas greco-romanas que havia visitado fora de Itália e Grécia!

Aos seus olhos, destacavam-se a dimensão e o estado de conservação. O momento era sobretudo especial e saboroso por serem os únicos visitantes em Baalbek! O ex-libris era o imponente e imaculado Templo de Baco, onde sozinho e no seu coração, deixava que a imaginação o transportasse ao apogeu do império que dominou o mundo dois milénios antes!

Uma imagem panorâmica no interior do Templo de Baco, no complexo arqueológico de Baalbek. O excelente estado de conservação é bem visível.

Aquele dia confirmara algo que Migs sabia. Viajar é confirmar que só existem percepções erradas sobre os locais. O Líbano afirmava-se, desde o primeiro dia, como um soberbo destino: um verdadeiro “caldeirão” de culturas e histórias e o receio antes da partida, esbatia-se cada vez mais, à medida que nele mergulhava mais fundo!

M I G S

Informações práticas sobre esta história

  • À data da viagem – Fevereiro 2018 – houve uma das maiores vagas de refugiados a cruzarem a fronteira entre a Síria e o Líbano. Os campos de refugiados estavam, notoriamente, sobrelotados;
  • Baalbek é ponto de visita obrigatório no Líbano! O local que mais recomendo fora de Beirut. Apesar do clima mais “pesado” durante a minha visita não senti qualquer insegurança. A simpatia e hospitalidade do povo libanês é uma constante, desde os grandes centros urbanos, aos meios mais rurais;

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14 thoughts on “Líbano | Um legado impensável no bastião do Hezbollah

    1. Olá Fernando! Que bom ver que apesar da minha ausência mais longa, continua a acompanhar os meus relatos por aqui. O Líbano é uma surpresa, talvez a maior de todas, para quem visita o país com desconfiança. É um belíssimo destino! Obrigado pela visita, leitura atenta e pelo comentário. Um abraço 😉

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  1. Confrontar o que agrada ao olhar com o que o perturba demais as emoções (sabendo à partida que seria assim), não é realmente a escolha de qualquer um. Por isso admiro imenso os espíritos que conseguem “sublimar e equilibrar” esses opostos dos destinos escolhidos, especialmente em tempo de férias. Como o Miguel faz. E que eu não conseguiria.
    Se o drama dos refugiados sírios no Líbano terá actualmente uma magnitude muitíssimo maior, já a imponência desse templo e da história desse lugar manter-se-á no tempo. Sem duvida que há história e histórias, que avançam a ritmos bem diferentes.
    Mais uma vez os relatos do Miguel fazem sempre a diferença em descrições de viagens.

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    1. Boa noite, Dulce! Permita-me, antes de mais, agradecer-lhe pela leitura atenta e, como já nos habituou, pela reflexão sempre pertinente que aqui partilha.
      Concordo que procuro o “choque” em viagem, por gostar da adrenalina que a instabilidade emocional nestas aventuras traz. Sinto que ajuda a criar momentos inesquecíveis e trazer histórias para casa, bem como a entrar melhor em mundos diferentes e distantes!
      Custa-me constatar que apenas três anos após a minha visita, as “páginas negras” da história do Líbano se tenham multiplicado, impedindo que todo o potencial escondido do país se revele ao mundo… Obrigado, Dulce. Que tenha uma boa semana 🙂

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  2. Bem vindo de volta com uma excelente descrição, Migs.
    Uma descrição histórica e cultural vivida e sentida. O templo de Baco ainda está muito bem preservado para um templo romano.
    Concluíste o teu texto com algo que tenho em mente cada vez que visito um pais: “Viajar é confirmar que só existem percepções erradas sobre os locais”, quantas vezes isso já me aconteceu ora por relatos ou sentimentos.
    Um abraço e o resto de uma boa semana.

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    1. Olá Irina! Muito obrigado pela leitura sempre atenta 🙂 pois é… já vos vou habituando a estes meus períodos de silêncio. Espero ter mais tempo para ir escrevendo com mais regularidade no resto do ano, para compensar estes primeiros quatro meses. Que bom perceber que partilhas esta ideia. É por isso que é sempre bom ir sem grandes ideias preconcebidas.
      Um abraço! 🙂

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    1. Olá malta! Obrigado pela leitura e por partilharem a vossa opinião 🙂
      Apesar de ainda só terem passado três anos desde a minha visita, a actual situação do país é totalmente diferente, mas continuarei a aconselhar vivamente! Um abraço!

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  3. Um relato de grande atualidade, com excelentes imagens visuais… para lá das fotos. Uma atualidade que só não é maior porque o ritmo dramático dos acontecimentos e a dimensão da tragédia nesta região do mundo, quase superam a ficção. O contraste, bem sublinhado, entre o trágico e o belo, deixa-nos o olhar suspenso no Templo de Baco… e na esperança de dias melhores. Obrigado.

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    1. A pandemia conseguiu silenciar as notícias que nos chegavam desta região, mas infelizmente ainda estamos longe de ver uma estabilidade duradoura nestes lados. É como tão bem refere no comentário, que os tesouros históricos alimentem a esperança de ver um futuro mais risonho! Obrigado pela visita e leitura atenta! 😉

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  4. Muito bom, Migs! Vou marcar para um dia me vergar perante “o imponente e imaculado Templo de Baco”. Grande abraço e continua a partilhar connosco as tuas viagens que espero possas um dia reunir em livro. Nunca olhar o mundo de um só lugar.

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    1. Olá Padrinho! Obrigado pela visita e leitura atenta 🙂
      O Templo de Baco é, de facto, a “cereja no topo do bolo”, mas todo o Líbano é um belíssimo destino – um verdadeiro “caldeirão” cultural! Um grande abraço!

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