Memórias da mudança do mundo,
Santiago de Cuba,
Agosto 2007
Aos primeiros raios de luz rufavam os ponteiros do relógio. O dia acordara, refletindo-se no translúcido mar caribenho. As aves ensaiavam os voos matutinos que as acompanhariam nas horas seguintes, ao ritmo da brisa que, suavemente, ondulava o pacífico mar.
Migs preparava-se para um dia de descoberta e aprendizagem a quilómetros do local onde, habitualmente, o tempo soalheiro pautava o ritmo do quotidiano. Havia-lhe sido dito que percorreria, pela manhã, a estrada que o levaria ao princípio da História moderna de Cuba. E foi nesta ideia, que os olhares assentaram pelo, às vezes asfalto, outras vezes gravilha, fora.
O trajecto estava, ele próprio, repleto de História. Pela esquerda, rolavam veículos de meados do século anterior, pela direita repetiam-se as palavras de ordem revolucionária! E este era apenas o princípio de uma viagem pelo tempo.

A ausência das tradicionais chuvas tropicais dava azo ao sobreaquecimento do autocarro onde seguia Migs, ao passo que as prováveis três ou quatro décadas de milhas do veículo não escondiam as avarias que se repetiam por cada metro. Assim, logicamente, o ar condicionado – pieguices dos tempos modernos – não dava sinal de estar de boa saúde, o que, aliado aos leques de improviso e aos sopros sucessivos, inquietava o tórrido ambiente da viagem.
Pela janela, o olhar de Migs dirigia-se às (muitas) pessoas que, pacientemente, aguardavam que alguém lhes oferecesse boleia. O espanto e incredulidade chocavam com as práticas que lhe haviam sido recomendadas ao longo dos seus doze anos de educação. “Não aceites boleias de pessoas desconhecidas” era um lema presente e uma regra intransponível e, de repente, em segundos, seguiam-se os braços estendidos, os carros parados e as boleias oferecidas. A perplexidade de uns era, porventura, o terror de quem havia implementado tal lema em casa! Mas era deste choque que Migs renovava a sua crença, não só nas pessoas, mas na generosidade sem esperança de retribuição.
Por fim, o caminho levara-o a Santiago de Cuba, orgulhosamente fundada nos longínquos anos quinhentistas, pelos conquistadores da Armada Espanhola. Porém, havia sido outra “armada” que a recolocaria na rota da História cubana, há meros cinquenta anos atrás. Dessa região, havia-se erguido o coração do movimento rebelde “Castrista”.


Pelos trilhos da densa floresta da Sierra Maestra, o jovem grupo revolucionário, de nome Movimiento 26 de Julio, montara o esquema que viria a derrubar a ditadura de Fulgencio Batista. E era por esses intensos relatos de História que Migs mergulhava pelo vasto manto verde da serra. E a cada passo que dava, pisava o mesmo solo que cinco décadas antes testemunhara o início da era, que nesse mesmo dia, os cidadãos cubanos ainda consagravam. E isso era, aos seus olhos juvenis, fascinante!
Feitas as introduções aos turbulentos acontecimentos do século XX em solo cubano, Santiago reservar-lhe-ia o clímax da viagem e desvendar-lhe-ia as personagens centrais da história que o país escrevia de si próprio.
De olhos entreabertos, tal era o incómodo do sol do meio-dia, Migs deparava-se com uma fachada simples, despida de folclores e ritos religiosos e somente decorada com o nome Cementerio Sta. Ifigenia. Cruzados os portões da entrada, a imponência do interior trespassava qualquer ideal pré-concebido de arte funerária ou tumular. O próprio Migs, rendia-se ao soberbo esplendor que aquele, à época ainda felizmente, estranho lugar conservava. Naquele espaço, a morte guardava uma definição contraditória e, por essa razão, o então viajante de palmo e meio concluía que ali se prestava não só culto a pessoas, mas também a Cuba.
Assim, avistava os nomes sonantes que ecoavam pelos inúmeros memoriais, com Bacardi e Maceo em destaque. A homenagem aos mártires do Movimiento 26 de Julio também não se escondia, mas era do fundo do seu campo de visão que sobressaia o maior e mais opulente túmulo do cemitério. Em seu redor, os militares, a passos cronometrados, faziam o Render da Guarda a cada trinta minutos e os cubanos ali presentes, ofuscavam os que apenas olhavam de visita. Migs indagava-se sobre quem granjeava tamanho respeito e admiração, quem seria, afinal, o detentor deste estatuto de herói nacional. Aquela marcha eternizava José Martí, por muitos considerado o pai da libertação cubana do colonialismo espanhol.

Aliado às pingas de suor, Migs despedia-se do local com um amargo remorso de não ser mais velho para que as memórias perdurassem com uma nitidez mais favorável. Seguia o seu caminho rumo ao Casco Antiguo de Santiago de Cuba, deixando nas suas costas, o peso do conhecimento que havia consumado.
Avançava sessenta anos de acontecimentos, factos e estórias e já perante as, parcialmente, destruídas paredes do quartel-general de Moncada vestia a pele revolucionária cubana. Do fiasco do dia 26 de Julho de 1953 não reza a História, mas havia-se tornado na primeira pedra da Revolução que chegaria mais de meia década depois. Entre cartazes de ¡Patria o Muerte, Venceremos! ou ¡Hasta la victoria, Siempre!, Migs revia o mundo a preto e branco, o mundo a que não assistira, mas que ali se impunha ante todos os seus princípios. Por breves instantes, aqueles muros amarelos, recheados de buracos de balas, lembravam-no da missão altruísta intrínseca à viagem – colocar-se no lugar do outro. Os valores de Fidel, Che, Raúl, Camilo, Frank, entre tantos outros, renovaram a alma do país, que após cinquenta anos, ainda os preservava nos mais simbólicos “quarteis” do movimento, por eles iniciado.
Deste modo, Santiago de Cuba era o baluarte que, diariamente, recordava os transeuntes que o espírito da revolução lhes comandava o destino. E era da sua praça central que se escutavam os ecos do primeiro dia de 1959, no qual El Comandante triunfara e anunciava-lhes as rédeas desse mesmo destino que, ali, Migs vivia e observava.

M I G S
Outras informações sobre Santiago de Cuba
- Dado que a história relatada ocorre no ano de 2007, é natural que algumas informações ou detalhes possam já estar desactualizadas.
- O antigo presidente cubano e líder da histórica revolução, Fidel Castro, faleceu em 2016. Os seus restos mortais foram sepultados no cemitério de Santa Ifigenia, em Santiago de Cuba, onde figura ao lado das mais ilustres figuras da História cubana.
- Para chegar a Santiago de Cuba, os viajantes que viajem de forma independente dispõem de duas principais alternativas: avião ou autocarro. A cidade dispõe de um aeroporto internacional e a grande cidade mais próxima para fazer uma viagem de autocarro mais curta é Holguín.
- A poucos quilómetros de Santiago de Cuba encontra-se a base militar norte-americana de Guantanamo.
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Estive em Cuba o ano passado, adorei ler o teu post 🙂
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Obrigado Ana! Que zonas de Cuba visitou?
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Eu fiz :
Matanzas
Cienfuegos
Trinidad
Camaguay
Santiago
Barracoa
Holguin
Guardalavaca
Ciego de Avila
Santis Spiritus
Havana
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Fantástico!
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É sempre um grande prazer ler seus textos! Tenho vontade e curiosidade por visitar Cuba. Já li relatos de viajantes falando mal sobre as condições de vida da população, enquanto outros se atêm a retratar as belezas naturais do país. Todos me dão a sensação de que Cuba parou no tempo! Sua visita ocorreu há onze anos, quando ainda eras um garoto, mas aguça muito a vontade de saber como está Cuba agora? Você pensa em voltar ao País?
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Visitei Cuba em dois anos consecutivos (2006 e 2007) e lembro-me muito bem de notar algumas diferenças, ainda que pequenas, de um ano para o outro. Em 2006, Fidel ainda era o chefe de Estado, mas em 2007, o poder já tinha sido transferido para o seu irmão. Hoje em dia, com o afastamento definitivo da família Castro, acredito que o país seja diferente daquele que eu conheci. Por isso, tenho vontade de lá voltar, porque sei que vou encontrar uma Cuba que, provavelmente, não reconhecerei. De qualquer forma, o país é incrível e merece, sem dúvida, uma visita! 🙂
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Seus textos me deram informações muito valiosas sobre alguns países. É importante para nós, que ainda não viajamos para determinados lugares obtermos informações bastante precisas quanto as suas. Obrigada
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Olá! Fico muito satisfeito por saber que posso contribuir para ajudar o processo de viagem de outras pessoas! Esta história passa-se numa zona de Cuba que, apesar de tudo, ainda se vai mantendo fora dos grandes holofotes turísticos! De qualquer forma, Cuba é um país imperdível! 🙂
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Que ótimo post! Algum dia eu vou visitar lá.
Tenha um dia maravilhoso!
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Muito obrigado! É um país muito especial, diferente de qualquer outra realidade. Merece a visita 🙂
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