Memórias de uma estrada de diferenças culturais,
De Sur a Muscat,
Agosto 2016
Em Sur, uma pitoresca localidade banhada pelo Golfo de Omã, o sol, ainda que lentamente, já fugia pelo horizonte escondido atrás das imponentes montanhas que decoram todo o litoral oriental do Sultanato, ao passo que no extenso areal, adjacente à cidade, a bola ia rolando pelos pés de, quiçá, futuros Ronaldos.
O dia alongara-se mais do que, inicialmente, se havia previsto. Era este o fruto da hospitalidade omanita que persistia em jogar todos os trunfos que o país, ali, permitia e assim, quase dezoito horas depois de ter saído de Muscat, Migs regressava à estrada que o levaria de volta à capital.

O SUV, que nesse dia havia conduzido Migs e companhia ao longo de largas centenas de quilómetros, pela costa, pelo deserto, pelas montanhas e pelas praias, era o inevitável ponto de encontro de duas culturas distintas: a ocidentalidade intrínseca ao quotidiano de Migs e o tradicionalismo islâmico de Shawqi. Ambos já com idades na casa dos “vintes”, facilmente presumir-se-ia que o distanciamento cultural fosse substancialmente reduzido com as inovações tecnológicas características do século XXI. Nesse dia, os cinco, já haviam cantado Justin Timberlake e dançado ao ritmo de reggaeton, sinais inequívocos de uma globalização, cada vez mais, global. Todavia, pela conversa reconheciam-se, a espaços, notórios contrastes.

Eram nesses contrastes que a atenção, logicamente, recaía, quer por parte de uns, quer da parte de outros e assim, ao ritmo do início do luar, faziam-se os quilómetros que separavam ambas as cidades costeiras. À passagem por Tiwi, Shawqi saía da estrada principal. Pela esquerda, as inigualáveis vistas da cordilheira estendiam-se até onde o olhar de Migs alcançasse, ao passo que à direita se apresentava, deserta, bela e convidativa, a denominada, pelos nativos, White Beach. Os tons alaranjados do céu carregavam o esverdeado mar de vivacidade, os cardumes palpitavam consecutivamente e nada faria Migs crer, naquele exacto momento, em cenário mais idílico.

«Que simpatia (de Shawqi) ter-se desviado da rota habitual para nos trazer aqui!», todos murmuravam em uníssono. Olhavam em seu redor, naturalmente envoltos no esplendor da Natureza, e detrás do carro, ainda iluminado por um par de tímidos raios solares, Shawqi, de joelhos, sob um tapete de improviso e de frente para o – já escondido – sol, rezava, conforme pregam os mandamentos do Islão.
A paragem era, afinal, tanto um requisito religioso como um complemento ao roteiro estabelecido ao início da manhã. Não era a devoção espiritual e religiosa que provocara em Migs um misto de sensações. Era, sim, a desconstrução de preconceitos e ideias estereotipadas a priori que ali, perante os seus olhos, se revelavam nada fundamentadas. Foi o entender que Omã, o Islão e o Médio Oriente não seriam os terrores anunciados pela maioria dos media ocidentais. E tudo isto porque meras horas antes se haviam escutado uns quantos minutos de reggaeton sem preconceitos, num exercício de transversalidade de ideias, crenças e culturas. Shawqi era normal. Era como Migs. Era um puto nos seus “vintes”.
Regressados ao veículo, a curiosidade, sobretudo, havia-se instalado. Suscitavam-se questões, às quais se pretendiam ouvir respostas, em catadupa. Todos queriam descobrir o que era mito e verdade e, num instante, a curiosidade era recíproca. Incrédulo com tanta pergunta que, para ele, eram despidas de interesse ou sensacionalismo, assim, Shawqi ripostava com uns «mas não é assim em Portugal?».

Já de si naturalmente dramática, a paisagem tornara-se arrepiante. O reflexo do luar concebia às montanhas um misticismo que Migs não decifrava, não porque não quisesse, mas porque Shawqi ainda era o foco. Construíam-se situações hipotéticas e pediam que Shawqi lhes dissesse o que, segundo as suas crenças, faria. O tema virara para as mulheres, o casamento e a poligamia. O que se poderia esperar de uma conversa de cinco homens, jovens-adultos, senão isto? «Afinal, quantas mulheres é que vocês podem ter?», perguntavam entre uma genuína curiosidade e uma jocosa deturpação das palavras que poderiam estar por vir.
A resposta, por seu turno, haveria de os surpreender, também pelo usual “combate ao mito”, mas sobretudo pelo tom sério e compenetrado, com o qual o jovem omanita assumiu o diálogo: «sim, a poligamia é, geralmente, aceite pela sociedade islâmica. Contudo, isto não significa que estejamos perante uma feira de mulheres. Para que o possas fazer, há dois requisitos que deves cumprir. Por um lado, há que assumir perante a comunidade que o fazes, que tens mais do que uma mulher, ao que se acresce o facto de teres de as colocar em situações igualitárias, sem privilegiares uma em detrimento de outra».

O “contra-ataque” não tardou e Shawqi devolvia a bola a Migs e companhia, perguntando-lhes como, em Portugal, se desenvolvia a relação em sociedade entre rapazes e raparigas, homens e mulheres. Nesse preciso momento, percebia, pela reacção dos quatro jovens portugueses, que a resposta seria algo dissociada com a sua própria realidade. E foi quando lhe contavam que todos partilham os mesmos espaços da sociedade, sejam profissionais, sejam sociais ou de diversão, que o seu olhar se abrilhantava, exprimindo um suspiro de uma descoberta incalculável: «a sério?».
Os cinco entreolhavam-se. O silêncio imperava. Ao fundo, as luzes de Muscat assaltavam-lhes a atenção, iluminando o caminho que assinalava o fim de um dia de aventuras, conhecimento e aprendizagens. O fim de estereótipos e de preconceitos. O fim da desconfiança. O fim do medo do Islão.
M I G S
Informações Práticas relacionadas com esta história
- O Shawqi foi um dos nossos compinchas omanitas que nos levou, pacientemente, a todos os locais que lhe propusemos. No dia anterior, havíamos andado com o seu irmão, Talal – também proprietário de uma empresa de transportes – que também prestou um serviço impecável. Recomendo-os vivamente, caso pretendam viajar em Omã. Para mais informações, clique no seguinte link:
- Ao longo deste dia, em que saímos de Muscat pelas 4h00 da madrugada, passámos pela cordilheira de Jabal Akhdar, seguindo para o deserto de Wahiba Sands, onde estivemos num acampamento de beduínos durante toda a manhã. Quando o calor de Agosto apertou, mergulhámos no oásis de Wadi Bani Khalid, local onde também almoçámos, tendo-se seguido a passagem por Sur e… o resto da história já a sabem!
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Deve ter uma viagem fantástica, e ainda com muito p contar.
Agora pergunto: seria uma viagem para quatro jovens mulheres? 😉 Ou mais um mito?
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Olá! Sim, Omã é um país fantástico, não se tendo deslumbrado em demasia com os poços de petróleo e mantendo um tradicionalismo ainda presente. Aliás, é um local onde ao longo de vários séculos se cruzaram múltiplas culturas e, talvez por isso, se encontre uma sociedade mais open-mind que outras naquela região. Por estas e um grande leque de outras razões, é o país perfeito para qualquer mulher, que tenha vontade de conhecer o Médio Oriente, dar o primeiro passo à aventura! 🙂
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