Jordânia | Os fugitivos de Mossul

Memórias que marcam,

Petra,
Agosto 2019

Há quem acredite em coincidências. Há quem acredite que as coisas acontecem porque têm de acontecer. Outros dizem que «foi sorte», quando de sorte se trata, ou «que azar!», quando ao azar diz respeito. Mas ambas as versões têm algo em comum: aconteceu!

Por esta altura, o Médio Oriente era, praticamente, como casa para Migs. Os cheiros intensos nas ruas e nos souks1, as cores desérticas contrastadas nos, ainda que poeirentos, brancos dos edifícios, as sinfonias em uníssono provenientes de dezenas, senão centenas, de mesquitas, as saudações cordiais e a tórrida brisa do verão eram cada vez menos, ambientes estranhos aos despertados sentidos de Migs.

Vista Wadi Musa
A vista para Wadi Musa, a actual cidade que acolhe Petra

A década havia sido penosa para as nações da região, mas a Jordânia trilhava o seu caminho, menos ruidoso e mais cauteloso. À semelhança de outros países, as fronteiras abertas tornavam-se convites para a chegada desesperada de vidas que fintavam a morte de forma premente e fugaz.

E se o Líbano havia sido inesquecível pela proximidade da guerra e pelo contacto físico com as suas cicatrizes, a história havia ficado incompleta e esta aventura jordana traduzir-se-ia no seu aguardado final.

The Treasure
O final do Siq, desvendando a Al Khazneh – “o Tesouro”

O Siq2 abria uma janela para o Tesouro milenar, guardado pelas estrelas da noite e descoberto pelos deslumbrados olhos diurnos. Migs rendia-se à sumptuosidade de tal lugar, até então fruto de estórias ouvidas e imagens efémeras. O pequeno feixe de luz que iluminava o escurecido Siq, alimentava a grandiosidade do prémio no seu final. A verdadeira «luz ao fundo do túnel».

O dia extenuante deixara-os ofegantes, fatigados, felizes. De manhã à noite, Petra (não se) fez num dia. Mas o sentimento era de missão cumprida entre o grupo, que com maior ou menor dificuldade, ajudara-se a completar o objectivo pelos violentos trilhos da História da humanidade.

Por do Sol
O pôr-do-sol nas montanhas que rodeiam Petra e Wadi Musa

O sol ainda balançava no colo das montanhas que rodeavam Petra, num fim de tarde com um carregado cor-de-laranja que incendiava o céu e a areia. Os edifícios ganhavam nova vida, acendendo-se outras luzes no “túnel” de Petra.

Não sendo fã incondicional de saídas, Migs olhava uma vez mais para trás. Encarava a jóia da coroa, já abandonada pelos demais passageiros. Indagava-se se seria maior do que a imaginara. Mas não conseguia concluir. Era soberba, isso sim. À medida que lhe voltava as costas, a pequena Marcelina passava-lhe um pequeno brinquedo, sentada às cavalitas do pai. Migs apanhava-o, devolvia-o e assim seguiram alguns metros, ao compasso da conversa que se desenrolava com Tariq, o seu pai.

Após um tradicional «I’m from Portugal / Sou de Portugal», ao qual se seguiu uma cara menos convicta, foi necessário invocar «Cristiano Ronaldo» para que a referência tomasse mais sentido. Retribuída a questão, Migs ouvia a resposta por que menos esperava. Sincera, ferida, a medo, mas com um olhar orgulhoso inesquecível: «I’m from Mossul, in Iraq. But don’t be afraid, I am Christian / Sou de Mossul, no Iraque. Mas não tenhas medo, sou Cristão».

Tariq_Marcelina
Marcelina e Tariq após a despedida

Migs havia quebrado esse preconceito, aquando da sua primeira incursão no Médio Oriente, em Omã (pode ser lido aqui), pelo que o medo não se haveria reflectido, certamente, na sua expressão. Mas a oportunidade de compreender Tariq havia aberto o seu lado curioso.

Tariq, médico em Mossul, havia fugido de casa, com a sua família, em 2014, vítima do crescente poder cimentado pelo Estado Islâmico, na zona. Tal como Migs, saídas não eram algo que o fascinasse e, nas circunstâncias descritas, eram ainda mais difíceis. Marcelina não conhece grande parte da sua família, alguns que haviam, inclusivamente, ficado retidos nas cidades-prisões do Daesh. Para a pequena menina, “casa” era o Egipto, onde se restabeleceram e recuperaram a vida pela qual lutavam a quilómetros de distância. Mas era para os pais que o seu significado se esmorecia e se tornava cada vez mais ambíguo.

Perspectivas de regresso? «I don’t know what to expect / Não sei o que esperar». Agradecia a Migs os minutos de conversa, curiosidade e ainda que efémera, amizade. O Siq estava percorrido, Marcelina pintava o cenário com ingenuidade, mas repleta de alegria e seria isso que alimentava a esperança eterna de Tariq em rever a sua amada Mossul.

M I G S

1. Souk é a denominação de um mercado tradicional nos territórios de origem árabe.
2. O Siq é o caminho sinuoso, numa brecha entre duas enormes massas de rocha seca e árida, que conduz à antiga cidade de Petra.

Algumas informações práticas relacionadas com a história

  • A entrada em Petra é cara, pelo que se ficar mais de quatro dias na Jordânia, opte pela compra do Jordan Pass, que além de dar como pago o visto de entrada no país, garante também pelo menos um dia de visita a Petra (a partir de 70 JOD ≈ 90 EUR). Veja mais informações no site oficial, ao qual pode aceder aqui.
  • Prepare-se para andar bastante em Petra, caso queira visitar os principais locais da antiga capital do Reino Nabateu. Há subidas longas e extenuantes, principalmente para chegar ao Mosteiro- Ad Deir.
  • Evite fazer as subidas recorrendo aos burros e cavalos que por variadas vezes lhe tentarão vender. Pelo que pude observar, não só me pareceram práticas muito pouco amigáveis para com os animais, como ainda o fazem com extrema insegurança.

Gostaste da aventura e queres saber mais sobre o destino? Clica AQUI para mais informações sobre a Jordânia!

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21 thoughts on “Jordânia | Os fugitivos de Mossul

  1. Cristiano Ronaldo, como Figo no auge da sua época, são um carimbo para sorrisos, apertos de mão e quebrar algum gelo que haja; e nas mais improváveis e remotas paragens do mundo 🙂

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    1. É bem verdade, Alberto. Podemos até desvalorizar esse facto, mas são inevitavelmente a maior marca/expressão do país, internacionalmente, cada um no seu tempo! Acho que não há uma localidade, por mais remota que seja, onde não surja uma t-shirt do Cristiano Ronaldo 🙂

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      1. Olá, Migs. Gostei muito deste post, da história e da maneira como escreves. Para mim não há nada mais bonito que juntar viagens com a escrita, contando uma história. Parabéns pelo trabalho incrível, ficarei a seguir os próximos “contos”.
        Obrigada,
        Sofia Diniz

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      2. Olá Sofia! Muito obrigado por teres vindo até aqui, descobrir mais um bocadinho das minhas partilhas pela Internet 🙂
        E claro, essas palavras tão simpáticas, deixam-me muito contente e satisfeito por conseguir cativar quem me lê. Beijinho e até à próxima história!

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  2. Infelizmente são muitos os “Tariqs” que estão longe das suas casas…daquele lugar que para a maioria de nós é tão natural poder estar perto. E quantas vezes nos esquecendo de dar o devido valor por esse facto.
    Obrigada Miguel, por partilhar mais uma história de viagens e de vidas.

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    1. É verdade, e como digo, ter conhecido, ainda que por escassos minutos, o Tariq, fez-me completar a viagem que tinha começado no Líbano, onde passei por muitos e extensos campos de refugiados recém-chegados da Síria.
      Eu é que agradeço a presença assídua e as sempre interessantes palavras que acrescenta, Dulce! 🙂

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    1. Muito obrigado pela visita e pelo comentário tão agradável de ler!
      E que tal? É um sítio incrível não é?

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      1. Muito Top! Caminhei muito por lá. Só não fui no Altar dos Sacrifícios. Uma coisa que achei muito top é o caminho de Amã pra lá, que já é uma paisagem de deserto. Como nunca tinha ido para o Oriente Médio foi Top!
        Um Grande Abraço,
        Vladimir.

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      2. É verdade! As estradas têm uma paisagem fantástica, em particular a King’s Highway! Foi um bom país para começar as aventuras no Médio Oriente 🙂 Venham mais!

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  3. Sou ateu, e quando leio coisas assim fico bem triste. Ter de dizer “sou cristão” para se sentir aceite e seguro não deveria ser necessário, nascemos todos iguais e quando morremos nos tornamos todos terra. Bonito relato da tua experiência.

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    1. É por essa mesma razão que é tão bom viajar, sobretudo para lugares mal “rotulados” pela sociedade Ocidental.
      Obrigado por trazeres a tua perspectiva! Abraço.

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    1. Olá! Em primeiro lugar, agradeço-lhe a visita e o comentário tão positivo. Esta é realmente uma história de viagem que me marcou bastante e que se tornou um momento especial de toda a viagem pela Jordânia.
      Por isso teria sempre de a publicar aqui também 🙂
      Uma vez mais, muito obrigado! Abraço, Mariel!

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    1. Muito obrigado pela visita e pelo comentário! A Jordânia é um país fantástico que recomendo muito 🙂 e este momento em Petra foi particularmente especial!

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