Memórias dum mundo paralelo,
Banguecoque,
Agosto 2008
Eram já treze anos de culturas e mundos paralelos ao quotidiano em que vivia. No lançamento de mais uma aventura, o “formigueiro na barriga” era tal e qual o primeiro de que se recordava e a ânsia de novas realidades ainda era o indissociável vector que lhe fazia o coração palpitar a velocidades superiores.
Foi quando o nome Tailândia ecoou pela primeira vez, que se havia tornado verdadeiro. O destino estava a muitos quilómetros, muitas horas de caminho, numa viagem a paragens nunca dantes, por si, exploradas. O país era, para o pequeno Migs, um enorme vazio, cuja única certeza se reflectia no nome da sua capital. Pois, era hora.
Nas ruas de Banguecoque, os cabos e fios eléctricos sobressaíam na diversidade paisagística da capital, essencialmente dominada pelo trânsito caótico, inversões de sentido de marcha desregradas e as milhares de motorizadas, que desafiavam a lógica da segurança rodoviária segundo os padrões, ditos, Ocidentais. Os arranha-céus ofuscavam a linha do horizonte, delineavam o progresso e marcavam o ritmo dos habitantes locais, em constantes entradas e saídas dos hotéis, escritórios, bancos e espaços comerciais. Nas bermas e nos passeios fervilhavam as cores, os cheiros e sabores, multiplicando-se pelas bancas e tendas que decoravam as grandes avenidas e os becos escondidos.

O ramalhete não estaria composto, todavia, se não fosse o próprio povo Thai a preencher os derradeiros espaços-brancos do quadro. De sorrisos contagiantes e simpatia inigualável – por vezes dando a sensação de quase roçar a subserviência – constituíam a verdadeira razão de se adjectivar Banguecoque como “cosmopolita”. Eram a alma, o coração, a vida da cidade.
Migs estava, definitivamente e pela primeira vez, numa metrópole desta dimensão em todas as suas demais vertentes. E por isso, a inevitabilidade de entrar no seu mundo característico, conduzi-lo-iria a novos caminhos. Novas realidades. Novas verdades.
Novos mundos.
Treze anos de idade são, porventura, insuficientes para que se compreendam determinados temas complexos da sociedade. Migs não era excepção, mas não os esquecia quando, pela primeira vez, com eles se debatia.
As luzes néon, que se acendiam pelas enormes avenidas, anunciavam a chegada da noite. O céu escurecia paulatinamente, os veículos aglomeravam-se em filas intermináveis e as buzinas ecoavam pelos cruzamentos esquadrilhados da cidade, ajudadas pelo, ainda, tímido vento.

Consigo, a noite abria a porta do lado obscuro de Banguecoque. O lado das ruas traseiras, dos néones semi-fundidos e dos fumos de odores duvidosos. Mas não só.
O reverso da medalha também habitava os núcleos mais movimentados da capital, “à luz da noite”. Em família, viajando com o habitual círculo de companheiros de aventuras que desde sempre o acompanharam pelos cantos do mundo, Migs e os outros pequenos viajantes chocavam-se com a realidade, que tantas vezes julgaram fictícia, obra das imaginações férteis dos pais, familiares ou professores.
Os metros que distavam entre Migs e a berma da estrada eram escassos. Se esticasse o braço, talvez já lá chegasse e seria essa curta distância que permitir-lhe-ia “chocar” de frente com o desespero humano. Sentadas no passeio, duas senhoras de meia-idade vasculhavam o lixo que se empilhava junto às sarjetas para onde os transeuntes haviam atirado os resíduos, na esperança de encontrar alimentos suficientes para que, esperar pelo dia de amanhã se tornasse viável.
Carpe diem.
Por muito que pudesse não querer assistir, o desvio do olhar era impossível. Perante si, estava a negação do valor da dignidade humana que, até então, eram somente palavras de adultos, dadas como adquiridas. A realidade da pobreza e miséria que ali se desenrolava era uma pedra, que sendo “dura de engolir”, lhe partia a redoma de vidro em que havia passado a sua vida. A verdade havia-se cruzado no seu caminho da forma mais directa, crua, credível e cruel.
À luz verde do semáforo, o tuk tuk em que seguia fazia-o perder as senhoras no seio do caos do trânsito. Aqueles segundos, certamente que se haviam transformado numa imagem perpetuada na sua memória. E se para a presumível inocência de uma criança, ter testemunhado aquele cenário com adultos já era cruel, eis que, umas escassas dezenas de metros adiante, numa segunda paragem obrigada pelo semáforo, a cena repetia-se, desta vez com um pequeno miúdo. A empatia estabelecida era maior, não porque se tratasse de uma criança – um ser humano mais vulnerável -, mas porque tinham idades mais semelhantes e a capacidade de se rever na situação era ainda mais incómoda. Era a diferença entre exclamar «Coitado!» ou «Merd*!», sem rodeios.

Emergido de uma “lixeira a céu aberto”, erguia um copo de gelado de uma reconhecida marca internacional de fast-food e, à medida que o enchia com areia de uma obra adjacente, acenava ao grupo de Migs. Simultaneamente, o sorriso que esboçava era mais largo do que a maior felicidade de que Migs se recordava. «Como é possível?», pensava.
Naquele preciso instante, aprendia a relativizar a felicidade, a perceber que ela também está em momentos mais simbólicos e não só materiais. Tornava-se mais humano. Essencialmente, educava os seus olhos para realidades que jamais, com a sua tenra idade, haveria sequer pensado, caso não as tivesse encontrado.
⊗ Continua na parte II, que pode ser lida aqui.
Gostaste da aventura e queres saber mais sobre o destino? Clica AQUI para mais informações sobre a Tailândia!
Biquinha??? Diz se “dum” ??
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Pai, diz-se “dum” sim 😉
Assim como daquele, daquela, deste, desta, etc.
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Espero rever a Ásia.
Toda sua descrição corresponde ao que senti em Hong Kong.
Vc chegou a viajar dentro do país? Lembra-se? Rs
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Olá! Não conheço Hong Kong, pelo que não consigo fazer essa comparação, mas creio que todas as grandes metrópoles asiáticas são muito comparáveis neste aspecto de serem cosmopolitas, cheias de luzes e ritmos frenéticos!
Cheguei a viajar para outras zonas do país, sim, embora não tenha ido a vários pontos de interesse cultural no norte da Tailândia. Lembro-me muito bem de tudo, ainda tenho muitos artigos para publicar sobre a Tailândia 🙂
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Okok parece que se diz Mas é pouco usual em escrita Priberam dixit
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Vivemos num mundo de realidades tão diferentes, culturas, sociedades…
A Tailândia é um desses locais, parece dois mundos paralelos no mesmo local. Nunca fui até lá, mas pelos relatos que leio faz parecer essa realidade.
Deve ter sido um impacto ver este país aos treze anos (não digo isto no sentido crítico, mas sim no sentido das realidades tão diferentes).
Muito bom post Migs, espero pela continuação.
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A Tailândia é um país de grandes contrastes e do ponto de vista turístico só interessa vender uma das faces da moeda. Mas há toda uma realidade escondida, onde vive a grande maioria da população local!
Na parte II deste artigo, ainda vou “chocar” mais com as ideias do “paraíso” que é a Tailândia! 😉
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Como habitualmente, também neste post a vertente “emoção” tem um papel crucial.
As emoções sentidas enquanto jovens são, talvez, as que mais contribuem para “modelar” a nossa estrutura sensível e emocional futura. Além disso, também o que é sentido fora do nosso ambiente habitual tem uma força maior, como bem mostra este relato bem escrito e muito sensível.
Esperamos pela continuação!
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Este é um daqueles artigos que melhor demonstram o porquê do “slogan” do blogue. Tentarei ser breve a publicar a continuação! Promete ser uma realidade ainda mais chocante, de um país que só é vendido como um paraíso! 🙂
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Que legal!! Posto dicas sobre o Japão! Quando for vir para cá pode dar uma olhadinha!
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Olá Patrícia! Obrigado pela visita e pelo comentário!
Já estive no Japão por duas vezes e é um dos países de que mais gosto 🙂 Certamente uma terceira visita terá de acontecer! Claro que vou aproveitar para ver as dicas do seu blog!
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Sério?! Que legal!! Lógico que ainda não conheço todos os lugares mas quem sabe posso ajudar de alguma forma! Até ser uma guia!! 😉
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