Memórias do rasto da História,
Pela autoestrada da morte,
Março 2018
A guerra estava intrinsecamente ligada a nomes como Iraque e Afeganistão. Foi com estes “bastiões da desgraça” que se habituou a crescer, viver e conviver. Por esse motivo, a Guerra do Golfo soava-lhe distante, perdida num momento da História que não havia visto com os seus olhos. Haviam-se tornado apenas relatos, sobrepondo-se à verdade da realidade.
E era nessa esperança, de reverter a ideia do passado, que o dia se tornava cada vez mais excitante. De manhã, à saída da capital, a infindável Cidade do Kuwait, que se estende pelas terras arenosas do deserto, marcava a sua imponente presença no limiar do horizonte, com os seus principais marcos a erguerem-se a centenas de metros de altura.

A civilização que se esbatia no espelho retrovisor era a antítese da aventura para a qual Migs rumava, lentamente. Na imensidão do deserto, que unia o Kuwait ao Iraque, imperava o silêncio, a calma, o calor abrasador e as cicatrizes da História contemporânea. Os oitenta quilómetros entre Al-Jahra e Abdaly eram a idealização da solidão, da sobrevivência e do pós-guerra.
A estrada Sheikh Jaber Al Ahmad Al Sabah, vulgarmente conhecida por autoestrada 80, ou autoestrada da morte, tornara-se um marco incontornável quer para a população Kuwaiti, quer para os curiosos que a visitavam. Ao longo dos quilómetros, Migs acompanhava a contagem decrescente, presente nos outdoors à beira da estrada, da distância da fronteira do Iraque. Migs sabia que, três décadas antes da sua visita, o Kuwait havia sido violentamente invadido pelas forças militares iraquianas e era em busca dessas marcas que prosseguia nessa contagem – ansiosa – até ao limite da legalidade.
O tórrido silêncio era súbita e momentaneamente interrompido por alguns veículos de serviço das quintas presentes na região. Os postes de electricidade e toda a sinalética eram, frequentemente, porta-estandartes de diversas mensagens de teor militar e político que a guerra registou para a posterioridade. «God bless US troops» ou «Thank you, America» ecoavam pelos ventos que levantava a areia do deserto e eram mensagens que confortavam o povo Kuwaiti, dando-lhes o alento necessário para que possam acreditar na improbabilidade de uma repetição do inferno vivido no início da década de 90.

E repentinamente, entre a fina poeira da areia que subia e caía, apareciam, dispersas, as cicatrizes e os bastiões das estórias que aquela autoestrada guardava. A invasão das tropas de Saddam Hussein havia entrado no Kuwait por essa mesma estrada, seguindo-se múltiplos bombardeamentos e as subsequentes mortes incontáveis. Extasiado com as terríveis marcas da guerra, Migs pisava o mesmo terreno de uma realidade tão recente e próxima, que ali se sentia intensamente. Tudo era visível, a olho nu, a escassos centímetros. As paredes derrubadas, os marcos dos tiros, o ar decrépito e o isolamento transportavam-no para o dia da acção. Os relatos que outrora havia escutado, eram, finalmente, reais. A História tornava-se presente e esse preciso presente moldava-lhe o olhar do futuro.

O countdown chegara aos últimos oito quilómetros. Não tardariam a chegar os checkpoints militares e os “interrogatórios” próprios da aproximação a uma fronteira delicada. O ambiente árido e inóspito personificava-se nos restos mortais dos animais que estavam caídos nas bermas da estrada. O limiar da legalidade territorial do visto que carregavam no passaporte era ali. A experiência já havia sido recompensadora. O sofrimento da guerra deixara de ser traduzido em páginas de livros, relatos dos mais velhos e notícias esporádicas. Havia-se tornado física, humana e real.

Regressavam à capital.
Salmiya, uma cidade nos seus arredores e englobada na área metropolitana, oferecia-lhes o ambiente de fim de tarde mais adequado para assimilarem a vasta e marcante experiência desse dia.

Trinta anos mais tarde, os Kuwaitis perfilavam-se como um povo ferido mas recuperado, sem medos de ameaças e seguros da sua identidade. Com o sol a iluminar de tons alaranjados o céu da capital, os contornos dos edifícios desenhavam as suas formas na enorme bola que desaparecia no horizonte. E perante tal cenário, as famílias aglomeravam-se entre passeios à beira-mar e praias celebrando o melhor da vida: a felicidade.
M I G S
Informações Práticas relacionadas com a história
- Para conduzir no Kuwait, os documentos de identificação portugueses foram suficientes (i.e. carta de condução e passaporte).
- A autoestrada percorrida neste dia – e nesta história – é perfeitamente segura e tem óptimas condições.
- Tendo visitado o país em Março, os termómetros em pleno deserto já se aproximavam dos 40ºC, contudo nos centros urbanos e na região litoral, a temperatura estabilizava nos 30ºC.
- No Norte do Kuwait também há outros pontos que podem ser visitados, embora os acessos sejam feitos por estradas secundárias. Falo, essencialmente, da foz dos históricos rios Tigre e Eufrates.
Gostaste da aventura e queres saber mais sobre o destino? Clica AQUI para mais informações sobre o Kuwait!
Mais uma fantástica experiência vivida. Uauu! Cada vez q publicas, fico a imaginar qual será a surpresa. É uma surpresa atrás de outra.
Sem dúvida, toda uma região rica p a história da civilização.
Algum cuidado para visita por parte de mulheres?
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Muito obrigado! É muito tranquilo para as mulheres visitarem o Kuwait. Aliás, volto a referir que há um grande mito criado em relação ao Médio Oriente 😉
E … mais surpresas virão!
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Muito bom Miguel.
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Obrigado, Miguel! Abraço!
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Tenho na memória o início desta guerra quase em directo e anunciada na RTP1 pelo muito jovem José Rodrigues dos Santos (creio não estar enganada…)
Foi há metade da minha vida…mas continuando para o que quero dizer…
…é muito interessante o tipo de experiências e “histórias” que o Miguel procura nas suas viagens e partilha nos seus posts. Procura literalmente sentir a “vida dos lugares”, o que eles transpiram, a sua energia vivida. Neste caso são as cicatrizes de um tempo doloroso e de um território sofrido.
E como habitualmente, um relato muito bem escrito e que dá gosto ler!.
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Pois, também já ouvi, da parte dos meus pais, que essa é também a principal memória deles da Guerra do Golfo! 🙂
De resto, tenho de lhe agradecer a presença assídua neste espaço! Procuro essas experiências no terreno e transmiti-las aqui, para que os meus leitores possam embarcar na viagem comigo! Beijinhos
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Como sempre, mais uma viagem fantástica que nos trouxeste, nos teus relatos.
Tu tens uma capacidade de escrever e levar-nos a viajar contigo, a forma como escreves e descreves, faz-me sentir que estou ali mesmo ao lado, com a componente de estar a ter percepção de tudo o que está a decorrer à minha volta, historicamente, socialmente, culturalmente…
Parabéns Miguel, mais um excelente post/relato/viagem que nos trouxeste.
Beijos.
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Olá Irina!
Em primeiro lugar, tenho de agradecer a visita e o comentário.
Essa é a minha missão, transportar os meus leitores para o cenário da acção. Contextualizar o que está a acontecer, as razões históricas, o enquadramento social, dar a conhecer pessoas são os elementos que completam a viagem, pois sem eles, esta estrada seria somente isso mesmo, uma estrada como qualquer outra.
E depois receber estes feedbacks é o fim da viagem e a cereja no topo do bolo. Se estas peripécias/histórias que conto, mudaram a minha imagem do mundo, estou certo que podem ajudar a moldar a imagem que outras pessoas têm 🙂
Muito obrigado, mais uma vez!
Beijinhos
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Que venham as próximas viagens (quando o tempo permitir) para podermos embarcar contigo. Estás de parabéns.
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