Memórias de uma manhã turbulenta,
Busan,
Setembro 2018
Os dias haviam mudado, mais sombrios, sob um desproporcional manto cinzento que descoloria a vivacidade dos grandes mercados citadinos. A manhã estava, aparentemente, mais tranquila e pasmada do que era comum. Ouviam-se uns tímidos chamamentos, que contrastavam com os grossos e pesados pingos de chuva intensa que rebatiam nos toldos e telhados dos edifícios que abraçavam a baía.
O tufão já se afastava de Busan, por onde havia passado com menor intensidade do que no Japão. E era nas águas do mar do Japão que, rugindo com cada vez menos violência, se dissipava. Mas pelas tendas de Jagalchi (자갈치시장), o vendaval ainda não dava tréguas e os pescadores e as jagalchi ajumma1 esforçavam-se por colorir o dia fusco com bancadas apelativas.

Inúmeros guarda-sóis serviam, àquela hora, outros propósitos. As suas cores eram inequívocas e a sua extensão era inigualável. Seguramente, eram filas de quilómetros, ou não fosse Jagalchi, o maior mercado de peixe e marisco da Coreia do Sul.
Sob o temporal, a agitação turbulenta matutina, característica intrínseca a qualquer mercado fidedigno, confluía para os espaços interiores e cobertos limitados. Falava-se alto, muito alto, algumas motorizadas fintavam comerciantes e compradores, o cheiro dos gáses poluentes era intenso e a convergência dos odores provenientes de centenas de bancadas com peixe fresco era muito pouco agradável!

Não se viam turistas e de mochila às costas e máquina a tiracolo, Migs, que era um notório destaque da restante multidão, cambaleava pelos corredores encharcados. Os peixes, as raias e os crustáceos dominavam o cenário, quer estivessem expostos em bancadas ou pendurados por arames no processo de secagem, mas era sob os famosos polvos que, maioritariamente, recaía a atenção dos transeuntes. A fama deve-se a uma tradição gastronómica local. Há quem coma pequenos polvos inteiros vivos, um processo exigente e de batalha, no qual é imperativo ter a certeza que o que se engole já não se mexe. Contudo, estas são práticas desvirtuadas da realidade mais antiga. Segundo escreve a História, a iguaria implicava um trabalho mais conivente com as boas práticas da tradição da culinária coreana, isto é, são as terminações nervosas dos tentáculos do polvo que mexem, ainda que o polvo já não esteja vivo. O san-nakji (산낙지) era, por isso, a razão da deslocação de inúmeros curiosos ao mercado, embora as vendem fossem escassas.
Nos bastidores de Jagalchi, a actividade portuária de Busan era fulgurante. Atracavam cada vez mais embarcações, de distintas dimensões, diferentes origens e com propósitos específicos. E ao ritmo alucinante da precipitação apressada, eram os passos dos pescadores e marinheiros, chegados a terra firme, que transportavam os cestos às respectivas jagalchi ajumma, confiando-lhes o dinheiro e o lucro do sustento quotidiano.


A escuridão, aliada aos, ainda, esporádicos trovões ameaçadores, esvaziava os corredores a céu aberto. A par e passo, o relógio ia avisando as refeições que se avizinhavam e, sem surpresa, os espaços interiores do mercado compunham-se à medida dos clientes. O temporal reluzia nos rostos de sorridentes trabalhadores, num nítido contraste que as portas espelhavam para o exterior, onde as tendas iam, lentamente, sendo desmontadas.
Por seu turno, Migs também seguia caminho, deixando no rasto uma experiência sensorial fascinante em Jagalchi. Dos portões que se abriam para o coração de Nampo-dong, sentia-se a estranheza de um dia atípico. As ruas desertas, despidas de trânsito, comércio e pessoas haviam perdido a alma que as, habitualmente, caracterizava. E entre os fios de uma baixa neblina, Gamcheon, um dos ex-libris de Busan, surgia na encosta que o abraçava.
Descartada a ida a Gamcheon, dadas as condições climatéricas, que certamente não se alterariam, o regresso ao metro seria penoso e cruel. Aos primeiros passos, trespassado o portão do mercado, a chuva havia-os deixado totalmente encharcados. A correria por estradas desertas fazia-se sob os toldos, não impermeáveis, numa busca incessante por um metro quadrado que fosse, onde a água não jorrasse.

«Passar pelos pingos da chuva» revelava-se impossível. Migs reparava que até as próprias cores das roupas estavam diferentes e que já não seria viável permanecer na rua enquanto a tempestade não se afastasse definitivamente. Destinados às escadarias, que desciam para o metropolitano de Busan, mas encostados às tendas furadas no exterior de Jagalchi, repensavam a melhor forma de contornar o vendaval. E foi, nesse momento, que uma senhora, estática e debaixo do limiar do toldo da loja, lhes oferecia o seu guarda-chuva. A sua boleia havia chegado e ao olhar em redor, o instinto, impulsivo, fê-la estender o braço, sem grandes rodeios, e sem que pudesse admitir uma educada recusa, deixava-lhes “um passe” até à entrada do desejado metro.
Se passado um mês de estar na Coreia do Sul, o tempo ainda não havia sido suficiente para que Migs compreendesse, inteiramente, o seu povo, estes pequenos gestos tomavam alguns dos mais notórios pontos favoráveis. Seguir-se-iam mais meses de descoberta constante, esperando que estes momentos não desvanecessem na memória mais imediata.
M I G S
1. As jagalchi ajumma é o nome, pelo qual, as vendedoras do mercado de Jagalchi são conhecidas.
Informações Práticas relacionadas com a história
- As melhores horas para visitar o mercado de Jagalchi são as primeiras horas da manhã, quando a grande maioria das embarcações atracam, o movimento é maior e os produtos estão mais frescos.
- O mercado é facilmente acessível, utilizando o metropolitano. Existe uma estação própria com o nome do mercado.
- Sendo Busan a principal e maior cidade costeira e portuária sul-coreana, deve-se aproveitar para provar algumas iguarias da gastronomia coreana, nomeadamente os pratos que incluam marisco e peixe.
- Para mais informações sobre o mercado, clica aqui.
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A prova de que a simpatia não tem fronteiras nem necessita de verbalizar! É nestes inesperados gestos que muitas vezes se “ganha o dia”, seja qual for o ângulo e a leitura que se queira fazer desta frase.
A verdade é que a nossa disponibilidade em férias é maior e estamos mais “aptos” a dar e a receber, o que obviamente é muito bom. Mas…e falo por mim: a viagem maior é aquela que tenho/devo empreender diariamente, entre rotinas, cansaço e dificuldades, de forma a estar atenta e disponível para as pequenas trocas. Que no fundo são as grandes aprendizagens e que nos ajudam a tornar melhores pessoas.
Obrigada pela partilha desta sentida viagem!
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Olá Dulce!
Peço desculpa por tardar em responder, mas estou (e continuarei a estar mais algum tempo) fora de Portugal e com acesso limitado à internet. Obrigado pelo comentário, com o qual não poderia estar mais de acordo. Uma excelente analogia de experiências esporádicas trazidas para o quotidiano!
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