Memórias de uma festa ditatorial,
Havana,
Agosto 2006
Do alto das torres da Catedral de la Virgen María de la Concepción Inmaculada de La Habana ecoavam, pelas ruas adjacentes, as badaladas da hora certa. As ruas, por seu turno, cantavam homenagens a El Comandante. O ar húmido e inóspito, quente e sufocante, conduzia Migs ao interior da mítica Bodeguita del Medio1, eternizada nas páginas romanceadas por Ernest Hemingway.
Embora o laureado autor norte-americano tenha sido o comandante do seu esquife ao largo da costa cubana – assim o contempla O Velho e o Mar – não era ele quem comandava as rédeas do ritmo do dia abrasador de Havana. Migs vibrava com as cores coloniais, os cheiros caribenhos e o salero dos incógnitos transeuntes. Era o despertar dos sentidos, o apurar da curiosidade e o crescente desejo de viver experiências que o prendiam ao Casco Antiguo2 da cidade.

Petrificado em pleno centro histórico, os seus olhos corriam os varandins de extensas ruelas. Saltitavam entre janelas vizinhas. As semelhanças, não apenas coloniais, eram inequívocas. Festejara-se algo. À época, ainda como memória recente, a comparação com os festejos do Euro 2004 em Portugal registara-se como modelo. As casas particulares eram porta-estandartes do orgulho da nação. Erguiam-se bandeiras. E todas saudavam El Comandante, Fidel.
O líder da mítica revolução comemorava o seu octogésimo aniversário em pleno Verão tropical e a data haveria, pois, de ser assinalada segundo ditava a vontade de Cuba. As tarjas sucediam-se pelas históricas calles3 da capital. Os retratos e as citações compunham a orquestra que se instalara. O maestro, por seu turno, assumia cada vez menos as rédeas do sonho que, meio século antes, abraçara, numa gradual passagem de batuta ao seu irmão, Raúl.
As ruas olhavam desconfiadas, os olhos questionavam o futuro e Migs mergulhava no espírito bipolarizado que o cercava. A festa parecia-lhe uma mera encenação, despida de emoção e “atulhada de obrigação”. Porém, era o rosto da nação, a mesma a que, independentemente do grau de liberdade, os nativos se orgulhavam de pertencer, sem que se sentissem constrangidos de o demonstrar. Afinal, e não obstante a História moderna do país, que ao longo do último século foi uma marioneta na disputa geopolítica mundial, às mãos do colonialismo espanhol, do imperialismo americano e do comunismo soviético, Cuba mostrava-se a Migs com uma marca identitária própria e única, preservada ao longo de décadas de jogos políticos. E era por essas cicatrizes do passado que passeava.

O culminar da festa dar-se-ia na, não menos imponente, Plaza de la Revolución. Se as bandeiras e o seu vermelho, branco e azul se juntavam às tantas outras cores coloniais dos bairros mais tradicionais de Havana, ali, naquele epicentro, eram o único foco presente, as únicas cores que pintavam a megalómana praça, iluminada pelas míticas figuras de Che Guevara e Camilo Cienfuegos4. A mensagem, contudo, reforçava o espírito desses dias de Agosto. Eram oitenta anos de vida e no rumo por que sempre haviam lutado. “Vas bien, Fidel!”
E era nessa luta diária que os milhões de habitantes da capital viviam, cercados pela opressão política, com a qual conviviam, naturalmente, e pelos avanços geracionais que quem os visitava trazia. Era esse o grande dilema quotidiano que Migs presenciava.
O Granma5 era a lei onde coexistiam as vozes da Revolução, dos líderes e do povo. As notícias, controladas pelo poder político, eram recitadas pelos transeuntes, como verdades absolutas. Os desenvolvimentos tecnológicos eram renegados de forma oficial e a miragem do progresso estagnava nas ideias dos mais ousados. E sempre no núcleo do dilema, Fidel apresentava-se como protagonista.
Naquele final de dia, já acinzentado, com tímidas gotas de chuva, as luzes da cidade iluminavam, a espaços, os grandes centros turísticos de La Habana. Do Malecón6, os olhares perdiam-se na linha do horizonte, sabendo que do outro lado do mar prosperavam o progresso e a riqueza. Mas deste lado, onde Migs estava sentado a contemplar o desfile de carros da década de 50, os rostos de rugas vincadas de dois velhos amigos não se interrogavam assim tanto. Pelo contrário, de Cohiba7 na boca, sabiam que Cuba valia por ser o que era. Um exemplo de como uma máquina do tempo seria. E neste caso era real.


Os seus olhos haviam visto as rédeas do país saltar de mãos em mãos, no limbo da incerteza do presente e futuro e talvez por isso, suspeitavam das novas gerações, donde surgiam as primeiras vozes críticas ao sistema que os governava, na ânsia incessante de novas oportunidades.
As oito décadas de vida de Fidel aliadas aos cinquenta anos de regime adivinhavam uma festa repartida entre o orgulho patriota e as mudanças urgentes das décadas vindouras. Era um pacto da sociedade cubana com o regime, cujo prazo de validade era perceptível, mas ao qual tinham de desejar “ochenta más!”.
M I G S
1. A Bodeguita del Medio é um famoso café da cidade de Havana, habitualmente frequentado por Ernest Hemingway enquanto viveu em Cuba, e actualmente um dos pontos mais visitados da capital cubana;
2. Casco Antiguo é uma expressão em castelhano (espanhol) que designa o centro histórico de uma localidade;
3. Calles significa “ruas” em castelhano;
4. Che Guevara e Camilo Cienfuegos foram dois dos mentores e líderes da mítica Revolução Cubana de 1959, tendo integrado o movimento rebelde 26 de Julio de 1953;
5. O Granma é o jornal oficial do governo e partido comunista cubano. Clica aqui para aceder ao website oficial do jornal;
6. Habitualmente conhecida por Malecón, esta é a estrada marginal, seguindo a costa marítima, que percorre Havana do centro histórico aos primeiros subúrbios;
7. Cohiba é uma das principais e mais reconhecidas marcas de charutos cubanos;
Outras informações sobre esta história e Havana
- Dado que a história relatada ocorre no ano de 2006, é natural que algumas informações ou detalhes possam já estar desactualizadas.
- O antigo presidente cubano e líder da histórica revolução, Fidel Castro, faleceu em 2016. Ainda em 2006, transferiria o cargo de Presidente para o seu irmão, Raúl Castro.
- Esta história reflecte as minhas memórias do que, enquanto criança, à época, mais me marcaram. É natural que alguma informação possa estar incompleta.
- Para chegar a Havana, os viajantes que viajem de forma independente dispõem de duas principais alternativas: avião ou autocarro. A cidade dispõe de um aeroporto internacional com múltiplas ligações para os continentes americano e europeu.
- É comum muitos visitantes conhecerem Havana através de tours organizados a partir de Varadero. Contudo, aconselho a que se marque alojamento em Havana e que a estadia se prolongue além de apenas um dia.
Gostaste da aventura e queres saber mais sobre o destino? Clica AQUI para mais informações sobre Cuba!
Fantástico!
Tb quero ir. Rsrs No entanto, gostaria de ter contato com o povo, de visitar uma escola, hospital,.. Há uma imagem negativa de Cuba por ser comunista, mas tenho cá dúvidas de que possa ser algo totalmente negativo.
Vi um programa na tv belga sobre golpes aos turistas e Cuba foi um dos exemplos, mas há estes golpes em tantos países. Quase caímos num golpe em Macau e quase em França (Paris).
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Também gostava de voltar, para ir com olhos adultos em vez de olhos de criança, mas acredito que o país já não é o mesmo. Em 2006 e 2007 era mais isolado e com um regime ditatorial mais vincado, o que me leva a crer que a essência do país se possa ter alterado um pouco.
O que é certo é que, até hoje, Cuba se mantém como um dos meus países preferidos 🙂
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Você gostou de Cuba? Conheci uma pessoa que gostou muito. Me disse ser um ótimo local para visitar. O termo espírito bipolarizado é muito interessante de se ler, assim como fascina ver os detalhes das fotos..a igreja…os carros..😍😍😍 de outros tempo….Tudo envolto aos detalhes de suas descrições ⭐⭐⭐⭐⭐
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Olá! Muito obrigado pelo comentário e pelas palavras! Cuba é um país fantástico, em particular pelo contraste que apresenta com a nossa realidade. Aconselho vivamente a visitar 🙂
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As memórias de criança envoltas no actual saber deram origem a um magnifico e educativo relato! Gostei muito!
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Como sempre, muito obrigado, Dulce, por acompanhar estes relatos 🙂
Um dos meus grandes objectivos com o blog é conseguir transmitir que independentemente da idade que tenhamos, tiramos sempre lições das viagens que fazemos!
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Gostei imenso da forma poética e romanceada com que descreveste Havanna, este dia, Cuba… Gostei muito mesmo. Parabéns 🙂
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Muito obrigado pelas palavras! Foi a forma mais autêntica, genuína e interessante que encontrei para dar a conhecer o meu mundo! 🙂
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E certamente acertaste 😁
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Adorei a descrição Miguel, e desde já vou pedir desculpas pelo atraso do meu comentário (mas a primeira vez que li o teu post não me foi oportuno comentar e ficou em stand by e ficou esquecido).
Tenho uma pessoa de família que viajou para Cuba creio que em 1978, foi um pais que a marcou muito na altura, creio que me tentou (à força) incutir a ir lá se algum dia eu tivesse oportunidade na minha vida.
Ora bem, não é que eu não tivesse curiosidade de visitar o país, tenho, exactamente pelas questões das diferenças culturais, as cores, as pessoas que me parecem ser muito humildes e humanas. Mas depois há um reverso de razões (que me foram incutidas) para ir visitar o pais que me faz “não querer ir visitar o pais”, não sei se isto faz sentido?
Tenho vontade de ir, e muita, por vários aspectos mas por outro lado, fui tão forçada a ir (pelas razões erradas, na minha mente) que acaba por não ser um dos meus destinos de eleição.
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Olá Irina! À semelhança de muitos outros países, Cuba também é um país de contastes. Percebo que a pressão que foi incutida possa ter impactado a vontade de lá ir, mas, embora a segunda e última vez que estive em Cuba tenha sido já em 2007, digo-te que é um país que certamente vale a pena visitar enquanto é o que é. Mais ano, menos ano, o regime vai sofrer alterações profundas (creio que acontecerá apenas quando os grandes mentores da revolução já não forem vivos) e rapidamente voltará a ser dominada por interesses económicos e políticos naquela região. Antes de 1959, o país era uma autêntica “colónia” americana e voltará a ser. Por isso digo, que Cuba marca a diferença enquanto não há iPhones, McDonalds e Coca-Cola 😉
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Seria, exactamente, a Cuba sem Coca-Cola que eu gostaria de visitar. 😊
Esta Cuba colorida e vibrante, mas lá está, questão a estudar. Ainda há outros locais primeiro… e as viagens, por enquando, estão em “stand by”. Espero, se for a tempo, ainda conseguir ver esta Cuba.
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