Memórias da peregrinação infantil,
Osaka,
Novembro 2018
Por vezes, são os detalhes, aqueles que a tantos viajantes passam despercebidos, que completam o puzzle da viagem. E nem sempre são planeáveis. Simplesmente cruzam-se com o caminho do viajante. Para sua sorte.
Era Novembro e a temperatura amena de um Outono pouco rigoroso no Japão fundia-se com a brisa que arrefecia os que, à beira-rio, viam o reflexo do dia nublado, na corrente que fluía rumo à baía de Osaka. A estação vestia a cidade das melhores cores para os postais que se perpetuavam nas lentes dos visitantes, com as árvores cobertas de tons amarelos e laranja, uns vermelhos mais ou menos vívidos, consoante a luz do sol que apanhassem.

Akiko, de três insuficientes anos de vida, corria entre toriis1 e templos, ruas e caminhos, esboçando a alegria e curiosidade, próprias de um dia intrigante e incomum. Os templos, ainda que cobertos por enchentes de peregrinos, incorporavam, naquele dia e em todo o país, um espírito revitalizado e jovial, fruto do destino de milhares de crianças. Impávido, perante a situação, Migs entrava, pé ante pé, nos recintos sagrados, à cadência das gargalhadas felizes de um dia de festa.
Era o Shichi-go-san2, uma cerimónia xintoísta secular na qual meninas e meninos de três, cinco e sete anos recebem e vestem os seus primeiros kimonos3, numa romaria aos templos do país. As diferentes cores que os pequenos fiéis envergavam multiplicavam-se em diferentes emoções e os pais, orgulhosos por natureza, deixavam-se contagiar pela felicidade dos seus petizes, que corriam nos recintos, fazendo as delícias dos vendedores e dos visitantes.

No fundo, o desejo intrínseco à cerimónia era a esperança de uma longa e forte vida aos que davam os primeiros passos. Eram também as suas primeiras conexões com o espiritual e, sobretudo, era a percepção da alegria que o dia em família lhes trazia – o que, no seio de uma sociedade vocacionada para o trabalho, era um tempo premente e necessário. Mas para Akiko e o seu irmão, a data simplificava-se a mais uma brincadeira entre irmãos.
Na base dos degraus que conduziam ao santuário central, a coordenadora chamava as crianças. Compunham-se os kimonos, entretanto já desarranjados, ao fim de um par de minutos de euforia. Uma a uma, ensinava-lhes a vénia de cortesia, agradecimento e devoção. Não demoravam mais do que dois minutos. A vénia. Depositavam uma flor e regressavam. Os pais aplaudiam-nas, lacrimejavam, guardavam recordações e compravam-lhes o chitose ame4, num último gesto de árdua esperança para a vida dos seus filhos.
Sentado no chão, entre pedras polidas e escorregadias, Migs comunicava com Akiko, a mais nova de todas as crianças que resplandecia no seu amarelo vibrante, em simbólicos gestos de “olá” e “adeus”. Como a conversa não se faria, certamente, de outra forma, os sorrisos e gargalhadas eram as únicas e escassas, todavia genuínas, respostas que obtinha. O pai mostrava-lhe como agradecer o doce e o balão que lhe havia comprado. A menina dobrava-se, numa sucinta vénia, à altura da sua pequena estatura.

Naquele dia, o kimono era um símbolo sagrado. De tradição. De respeito. De família e passagem de testemunho. De devoção. De orgulho e união. Sobretudo, de educação. E em momento algum era renegado por quem fosse.
Foi a lição de que a preservação dos costumes identitários de um povo e nação eram a alegria e o respeito das gerações vindouras. E quem melhor que Akiko para o demonstrar?
M I G S
1. Um torii é uma porta tradicional japonesa que assinala a entrada de um santuário xintoísta;
2. Shichi-go-san (tradução literal: sete-cinco-três) é uma celebração tradicional, associada ao xintoísmo, na qual meninas de três e sete anos e meninos de cinco anos se dirigem aos templos para rezar pelo seu crescimento saudável. O festival, que ocorre anualmente a 15 de Novembro, está também associado às primeiras vezes que as crianças vestem os kimonos;
3. O kimono é o traje tradicional japonês;
4. Durante o ritual, as crianças trazem consigo uma mala com chitose ame, o “doce dos mil anos” e contém símbolos associados à longevidade e saúde, tais como a tartaruga ou pinheiros;
Informações Práticas relacionadas com a história
- Quando o dia 15 de Novembro é um dia da semana de trabalho, por norma as celebrações passam para o fim-de-semana seguinte. Para mais informações sobre esta festividade, clica aqui.
- A acção passa-se no templo Osaka Tenmangu, situado a uma distância, relativamente perto de Umeda. O santuário é servido por uma estação de metro com o seu nome.
Gostaste da aventura e queres saber mais sobre o destino? Clica AQUI para mais informações sobre o Japão!
Para além da surpresa da temática, baseada na princípio de “rezar pelo crescimento saudável”, e que acho uma ternura, a forma fluída como escreve/descreve o que encontra e sente é muito agradável.
Acho que já escrevi isto anteriormente, mas vou repetir: deveria dedicar-se seriamente a escrita de viagens, pois a forma como o faz é muito cativante e sensível.
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O Japão é um mundo à parte e fascinante, os princípios com que crescem são realmente únicos. É um país que aconselho a toda a gente, quer sejam ou não fãs da cultura nipónica (eu não era e regressei rendido).
Uma vez mais, muito obrigado pelo comentário e pelas palavras tão simpáticas! 🙂
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Outra grande viagem!
Você sentiu dificuldade em se comunicar com os nativos?
P.S.: tudo certo para Albânia em Agosto.
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Olá! Neste caso, acho que é um grande país que faz uma grande viagem! 😉
A comunicação no Japão é muito fácil, não o sendo à partida, ou seja, é verdade que muito pouca gente fala inglês, mas há sempre forma de comunicar com eles (tradutores, gestos, etc). Aliás, muitas vezes são eles próprios que querem comunicar connosco!
Vou ficar atento a essa viagem à Albânia!
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O Japão é daqueles países que me fascinam. E a forma como tu descreves as tuas viagens fazem-nos viver momentos memoráveis.
Parabéns, pela escrita, pela componente cultural que nos trazes e sobretudo pela parte humana.
Dá sempre vontade de ler mais.
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Olá Irina! O Japão é realmente um país, pelo qual nos apaixonamos facilmente. Já lá foste?
Muito obrigado pelas palavras elogiosas, mas de facto as viagens são exactamente isso: experiências, cultura e pessoas. Prometo trazer sempre mais e melhor conteúdo 🙂
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Não, infelizmente nunca fui.
É exactamente por isso que gosto do que escreves, fazes-nos sentir lá 😉
É o que eu busco quando estou em viagem, conhecer o cultural e a diversidade, a parte humana, não o melhor restaurante nem aquilo que toda a gente sabe a ler em livros.
Continua.
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Um dia que lá vás, tenho a certeza de que vais adorar, porque o Japão permite-nos conhecer todas essas vertentes – talvez a mais complicada seja a parte humana, já que é difícil integrar-nos rapidamente, mas há sempre excepções 😉
Obrigado por acompanhares estas aventuras!
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Olá Miguel! Vi agora que andaste pelo Japão! Que sonho! Talvez em 2020 lá consigamos ir… vamos ver. De qualquer forma quando for vou ler estas dicas todas outras vez 🙂
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Olá Ivan! É um destino fantástico. Certifica-te que consegues ir o máximo tempo possível – o Japão merece! Se precisares de ajuda com o plano, fala comigo. Obrigado pela visita e pelo comentário! Abraço!
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Que doçura de texto! Fez-me viajar, como outras vezes, sem tirar os olhos da tela do computador! Japão é um sonho de viagem ainda a ser realizado! Um abraço.
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Olá! E é um sonho que vale a pena ver concretizado 😉
Muito obrigado pelo comentário e pelas simpáticas palavras!
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Excelente partilha 👌🏻 sentimo-nos a viver esse momento contigo!
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Obrigado pela visita e pelo comentário malta 😉
Têm de pôr as mochilas às costas e ir ao Japão! É incrível!
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