Memórias da fidelidade desconhecida,
Cairo,
Março 2018
⊗ Continuação da parte I, que pode ser lida aqui.
Os decibéis do ritmo da música dispersavam os ruídos frenéticos do trânsito do Cairo. As colunas estremeciam e os corações palpitavam ao seu compasso. Cinco ou seis carrinhas – de caixa aberta – ziguezagueavam, ora pela direita, ora pela esquerda, ultrapassando e deixando-se ultrapassar.
Atento ao cenário diante dos seus olhos, Mohammad tentava explicar-lhes, por fracas palavras em inglês, do que se tratava. À cadência dos tímidos soluços, lá pronunciava um «wedding» fugaz. Debatia-se com a falta de vocabulário, enquanto coordenava os gestos entre a condução e a explicação, mas nada que Migs visse como um obstáculo à compreensão.
Cada carrinha transportava, no mínimo, uma dezena de convidados e iam devidamente separados. Convidados da noiva nuns, convidados do noivo noutros. Mulheres e crianças para um lado e homens para o outro. Eram os mais jovens que, encarregues da animação – como se as manobras rodoviárias não lhes fossem suficientes – seleccionavam a banda sonora, à medida que saudavam os demais condutores e peões.

O trajecto que unia a Cidade dos Mortos ao bairro Copta da capital egípcia fazia-se num piscar de olhos, dada a experiência multissensorial que os rodeava, absorvendo-lhes a atenção e o tempo.
Chegavam ao destino. Parados em frente à entrada da rua principal do bairro, fortemente policiada, olhavam em redor e Mohammad apontava na direcção de uma grande mesquita de mãos dadas com as igrejas cristãs. É a conhecida mesquita de Amr Ibn Al-As, que deve a sua fama não à sua beleza nem ao seu esplendor, mas ao facto de ser a mais antiga mesquita do continente africano. É, por isso, um marco para a fé islâmica e um dos locais mais frequentemente associados com a doutrina religiosa. O esforço de Mohammad, aliado à sua simpatia natural, eram evidentes. Assim, combinavam que leva-los-ia ao hotel após a visita ao bairro copta. Sorriam e, ainda que momentaneamente, despediam-se, com a deixa «demorem o tempo que quiserem, aqui estarei».

Migs passava pelo controlo policial à entrada do bairro, fruto das medidas de segurança renovadas e impostas pelo Presidente egípcio após os atentados terroristas que haviam ocorrido nos últimos anos, e já se escutavam os sinos a apontar a hora certa. Aos primeiros contundentes sinais de que a atmosfera envolvente mudara, juntavam-se os primeiros vendedores ambulantes, crentes numa venda iminente.
O campo de visão dos visitantes era assoberbado pelas primeiras igrejas, duma rua repleta delas, cujas riqueza e sumptuosidade sobressaiam, nitidamente. Entravam e saíam, sem tempo contado nem passo apressado. Aquele local, que havia sido palco de mortíferos ataques, meros meses antes, era, à hora da visita, incontestavelmente, sereno e caloroso. As paredes expunham as cicatrizes dos acontecimentos e eles liam-nas, decifravam-nas e sentiam-nas. As estórias contavam-se pelos elementares símbolos e gestos, davam vida às flores depositadas e às letras escritas, recordavam pessoas. E era presas àquelas paredes e emoções que os fiéis seguiam os rituais, batalhando o medo de outrora e renovando a esperança no futuro.
O tique-taque dos ponteiros já não lhes ordenava o ritmo e o sol, ainda que ligeiramente, emitia os últimos minutos de luz do dia. No exterior, Mohammad aguardava.

Assim como haviam combinado, reencontravam-se “às portas do Cairo Copta”. Sem acesso a um mapa, nem à internet, deixavam-se ir à mercê da vontade do condutor. A meio caminho, Mohammad questiona-os sobre o seu país de origem, ao que a resposta «Portugal» vem associada à exclamação «Cristiano Ronaldo». Agradecia-lhes o dia de trabalho que lhe proporcionavam, a comida que lhe chegaria à mesa mais tarde e a simpatia demonstrada. Subitamente, enquanto acrescentava que lhes gostaria de retribuir com algo, vira o volante no sentido inverso ao que percorriam.
Chegados a uma rua poeirenta e caótica – à imagem da metrópole – estaciona, bloqueando o campo de visão de quem quisesse entrar no cruzamento. Apenas mais uma contra-ordenação, a que já nem Migs presta atenção. Mohammad sai do carro e pede a Migs que o acompanhe. Adiante, seis, sete ou oito faixas de circulação – consoante a organização dos demais condutores – representavam uma travessia entre eles e o destino. Nunca fora tão apropriado o nome «Cristiano Ronaldo» antes de tamanho desafio. Fintar carros era uma tarefa diária dos transeuntes do Cairo e, por conseguinte, de Migs há um simples par de dias. As buzinas eram ensurdecedoras, os escapes poluíam o campo de visão, os carros poliam-lhes as roupas, a mão de Mohammad guiava o caminho e o receio do desconhecido captava-lhe a concentração. Eis que chegados ao outro lado da estrada, os aguardava Said. O seu estabelecimento comercial cingia-se a um cubículo onde guardava uma máquina, cuja função de espremer, sucessivamente, cana-de-açúcar lhe garantia o seu próprio sustento, bem como atraía grande parte da clientela das redondezas. Esta era a oferta de Mohammad, que como anfitrião prometia que o Egipto ficaria algures na memória dos seus clientes.
O restante trajecto fazer-se-ia mais guloso do que inicialmente previsto. Deliciavam-se com o sumo, doce e refrescante, que combinava com a descida de temperaturas de fim de tarde. Na praça Tahrir, de olhos no horizonte, admiravam o, porventura, mais belo pôr-de-sol citadino. A ponte que cruza o rio guiava a enorme bola de fogo que rolava pelo alaranjado céu e de vidros abertos, sorrisos no rosto e sentimento de dia inesquecível, a última paragem da boleia avizinhava-se.

Porém, coincidia, também, com o momento por que, ansiosamente, aguardavam há largos minutos. Nunca chegaram a rever o preço, após concordarem com o prolongamento do percurso, o que aliado à fama e aos múltiplos avisos, tornavam o cenário mais acinzentado. Os candeeiros davam à luz a efervescente vida nocturna do Cairo e as lançavam-se as festarolas pelos incontáveis barcos que navegavam as calmas águas do Nilo. Inquietos, questionavam Mohammad, que, de novo, a tímidos soluços, lhes devolvia a questão «120 EGP (≈ 6€) é muito ou acham justo?»
A tensão e angústia esvaíam-se, o alívio imperava. Em português, os viajantes discutiam o preço justo a pagar. Ao encaminharem uma nota de 200 EGP, Mohammad apressava-se a contar os trocos para repor a quantia acordada. «Mohammad, obrigado pela volta que nos levaste a fazer, pelos pedidos imprevistos, pelas deslocações fora da rota e pelas esperas intermináveis.» Com a nota numa mão e o troco na outra, o jovem egípcio, sem se dar conta de tudo o que lhe acabara de ser dito, agradecia-lhes veementemente. A emoção trespassava-lhe os olhos, que embora não lacrimejassem, tornavam-se lentamente húmidos e aguados, acompanhados de um subtil tremor na voz. A incredulidade seria tão grande para si, como era, naquele preciso momento, para Migs, em prismas distintos, mas unidos pelo mesmo motivo: o valor do dinheiro e a integridade humana.
«Shukran¹, Mohammad.»
M I G S
1. Shukran é uma expressão de agradecimento em árabe – em português, obrigado;
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Na vida tudo é relativo. E o valor do dinheiro mais relativo do que tudo…
Gostei muito da viagem e da forma com que está descrita!
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É verdade, Dulce. E mesmo sabendo disso ainda é possível ficarmos estupefactos em situações destas. Obrigado pela visita e por partilhar a sua opinião 🙂
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Sempre tive curiosidade por saber mais sobre os cristãos coptas. No sentido histórico.
Hum…interessante encontrar calfo de cana no Egito.
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Apesar de tudo, no Egipto, cerca de 10% da população é cristã. Este legado ficou praticamente desde os tempos da fundação do cristianismo, antes da maioria da população ter sido, mais tarde, convertida ao Islão.
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