Líbano | (Con)Viver às portas do Inferno

Memórias de um paraíso à beira do Inferno,

À margem da Síria,
Fevereiro 2018

Caos.

O trânsito de Beirut era a última barreira de um dia que, aos olhos de Migs, seria marcante e inesquecível. Para aflição de uns e delírio de outros, a fronteira que divide os territórios sírio e libanês era o ponto de chegada. O destino estava traçado.

As buzinas, os “chega para lá” e o milagre da multiplicação das faixas de rodagem eram os habitués de mais um despertar madrugador de quarta-feira na, outrora, Paris do Médio Oriente. Ao volante, Kifah procurava uma ligeira abertura que lhe permitisse seguir caminho para fora dos subúrbios da capital. A sua técnica e perícia já se coadunavam com a utilização do telemóvel, os olhos fora da estrada e um subtil tédio, por tamanha “normalidade”. Por seu turno, Migs discordava e a adrenalina da selvajaria rodoviária era, notoriamente, o clímax dos dias, até então, passados no Líbano. A incredulidade na inexistência de acidentes apimentava-lhe o gosto por ficar apenas a olhar pela janela e contemplar a fluidez errática do trânsito.

Beirut from Highway
A sair de Beirut

Beirut chamava-os pelos espelhos retrovisores. O horizonte impunha-se, os arranha-céus destacavam-se e a ruidosa banda sonora harmonizava o ambiente, naturalmente caótico, que a caracteriza. O caminho não era longo, afinal, o Líbano é um país pequeno, onde as distâncias de lés a lés se assemelham à de um passeio pela marginal lisboeta. Contudo, é do percurso sinuoso que se fazem os minutos de suspense, que se criam expectativas e que se permite deslumbrar com a variedade paisagística do país. A cordilheira central era o portal que transportava Migs, Kifah e companhia ao país escondido, da verdade e da realidade, do seu legado histórico e da prisão a céu aberto chamada Vale de Beqaa. 

Kifah nasceu na subida da montanha que se ergue sob Beirut em plena guerra civil. O seu olhar cresceu acostumado a períodos conturbados e, talvez por isso, relatava-lhes, de voz dolorosa, a incompatível relação com o Estado de Israel. A angústia, raiva e rancor marcavam-lhe o compasso das palavras à medida que aceleravam aos escassos quilómetros da fronteira síria. Os ponteiros do relógio acertavam na hora certa e o sol, que se erguia no alto céu, pintava as cores do vale, que acordava para mais um dia de trabalho, rodeado pelas cordilheiras que fazem do vale de Beqaa, um refúgio para quem o procura.

Historicamente, o vale de Beqaa demonstrou ser o destino traçado do desespero alheio, numa missão humanitária altruísta que se esconde por trás do “véu” que os países do Médio Oriente acarretam e que lhes é imposto por outrem, conferindo-lhes imagens dissociadas dos seus quotidianos.

Syrian Border
A rua que se dirige à fronteira entre o Líbano e a Síria. As montanhas ao fundo já são parte do território sírio, estando a cerca de quatro quilómetros das ruínas de Aanjar

O carro parava a escassos metros do fim da estrada de asfalto, que havia dado lugar à gravilha. O cheiro da montanha e o ar fresco da manhã davam-lhes as boas vindas a Anjar e a “temível” Síria estava a quatro quilómetros a Este, quilómetros que lhes pareciam meros metros. Anjar guarda as memórias do que foi um importante posto de controlo e comércio do período Umayyad 1 que, estando localizada a meio caminho entre Damasco e Beirut, servia de ponto de passagem das pessoas e mercadorias que impulsionavam a região em plena Idade Média. Migs falava com Asadour, libanês de nascença, mas arménio de coração e alma, imerso no intenso cheiro dos cedros, a árvore nacional do Líbano, que decoravam as, outrora, avenidas de Anjar.

Aanjar Old City
As ruínas de Anjar, uma das principais cidades comerciais do período Umayyad

De olhar erguido, o orgulho de Asadour na sua família estava patente no seu discurso. No princípio do século XX, aquando do genocídio arménio, os seus familiares haviam-se instalado no vale de Beqaa, à semelhança de tantos outros que, à época, tomaram o mesmo rumo. Nos letreiros da cidade, toda a informação é apresentada em árabe, francês e arménio, a população é cristã e, diariamente, empenham-se na árdua tarefa de conservar e redescobrir a História que jaz nas ruínas de Anjar. Asadour, que é um dos impulsionadores do projecto que se predispõe a recuperar o legado da cidade, pormenorizava nos detalhes, reflectia sobre o passado, desconstruía o futuro e lembrava o genocídio arménio, por parte dos turcos, o tal que Adolf Hitler fez questão de relembrar que “afinal, quem se lembra do que fizeram aos arménios?” 2, como que justificando as suas actuações dos anos seguintes. E na verdade, o olhar de Asadour reflectia esse mesmo sentimento de culpa por ser “apenas” mais uma estória do passado. O mesmo passado longínquo que Migs fingia não ver antes de se deparar com ele, porque, na verdade, esse passado perpetuava-se perante si, ali, naquele instante, em que centenas de sírios escapavam ao Inferno de Ghouta, que decorria a escassos quilómetros donde se encontrava. Em conversa, Asadour descaía-se, sem querer assustar os visitantes, que caso tivessem chegado um par de horas mais cedo, ao nascer do dia, se ouviriam os bombardeamentos do lado de lá da montanha.

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Migs e Asadour

Ao longo da visita, Migs focava a semelhança entre a cidade desenhada segundo as linhas islâmicas e uma cidade da época romana – idênticas em estrutura, porém opostas em significado e razão histórica.

O vento matinal que se fazia sentir dirigia-os rumo às ruínas do palácio principal do complexo de Anjar. Asadour contava-lhes que, sem o apoio da embaixada sul-coreana no Líbano, o Grande Palácio de Anjar não estaria nem parcialmente restaurado, como se apresentava perante os olhos de Migs. Voltado para a praça da outrora mesquita, Migs facilmente descortinava a opulência que o palácio carregara no período Umayyad, quando o califado era regido por Marwan II, o herdeiro do expoente máximo do mesmo.

Aanjar Old Umayyad City
O Grande Palácio de Anjar

Num ápice, Migs pintava a cidade como o ponto de encontro entre o trabalho diário da comunidade arménia e o fluxo de auxílio aos refugiados que vão desaparecendo da vizinha Síria. A importância histórica de Anjar perpetuava-se no tempo, e se em séculos idos era uma capital comercial, havia-se transformado na miragem com que tantos, que prosseguem caminho, sonham, logo ali ao lado.

E se escassas horas antes, ainda que ligeiramente,  as suas pernas tremiam de angústia e algum receio de chegar às portas do Inferno, Migs partia consciente de que nestes “fins-de-mundo” se encontram as pessoas que mudam o mundo, atrás das cortinas. Aquelas que, quase sempre, não se vêem.

M I G S

1. O período Umayyad corresponde ao período de tempo entre meados do século VII e o ano de 750. Esta época corresponde também ao denominado califado Umayyad, quando este atingiu a sua maior extensão, após a morte de Maomé, chegando, inclusive, à península Ibérica. A sua capital era Damasco, actualmente capital da Síria.

2. Esta citação de Adolf Hitler faz parte do seu discurso de Obersalzberg a 22 de Agosto de 1939, poucos dias antes de invadir a Polónia e iniciar a Segunda Guerra Mundial.

Informações Práticas sobre Anjar

  • As ruínas de Anjar são um dos locais no Líbano distinguidos pela UNESCO como World Heritage Site. Para mais informações sobre este local, clique no link seguinte:
  • Para se visitar as ruínas, assim como grande parte dos locais no Líbano, aconselho a que se faça de Beirut a base para explorar o país, dado que as distâncias não são longas. A principal cidade do vale de Beqaa é Zahle que se encontra a poucos quilómetros das ruínas.
  • À data de 27 de Fevereiro de 2018, a entrada no complexo custava 8000 LBP (≈ 4,5€).

Gostaste da aventura e queres saber mais sobre o destino? Clica AQUI para mais informações sobre o Líbano!

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12 thoughts on “Líbano | (Con)Viver às portas do Inferno

  1. Adorei as fotos. Aquela segunda representa bem o que me faz pensar em Beirute.
    Deve ter sido fantástica a sensação de estar na ex-Paris do Oriente Médio. Vc foi a partir de Aman?
    A citação de Hitler é de 1939, e as ruínas foram descobertas logo a seguir em 1940.
    Vc viu campos de refugiados? Presença da ONU?
    Voltando a citação de Hitler… Só me fez lembrar a citação recente de um candidato à presidência do Brasil sobre a escravidão. É lamentável!

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    1. Obrigado pelas palavras! O Líbano foi uma grande surpresa para mim, um país que adorei e onde pretendo voltar, sem qualquer dúvida. Beirut foi a primeira paragem de uma viagem que fiz no início deste ano por alguns países do Médio Oriente, na qual a Jordânia não esteve incluída.
      Os campos de refugiados são uma realidade bem presente e visível no vale de Beqaa, mas tenho essas histórias guardadas para artigos futuros 😉

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  2. Leitura inteligente e aprazível! Como sempre seu artigo me dá a sensação de estar vivenciando a experiência, desbravando o Líbano com a mesma perplexidade e inquietude! Obrigada por compartilhar com seus leitores experiências tão ricas! Um abraço.

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    1. Olá Carla! Obrigado pelo feedback, é sempre gratificante saber a opinião de quem os lê.
      Claro que sim, posso partilhar nesse grupo, e aproveito para lhe deixar o convite para subscrever o blog com o seu e-mail, para receber informação sempre que for publicado um artigo novo 🙂

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    1. O Líbano é o típico caso de um país que tem uma imagem pública muito dissociada da sua verdadeira essência! Quem lá for, regressará surpreendido, abismado pela herança histórica dos seus monumentos, com a cosmopolita Beirute e pelas pessoas!
      Vale o investimento 😉

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    1. É verdade! Espanta-me como, para nós, este rótulo que lhe colocamos – “às portas do Inferno” – se transforma em paraíso para os milhões que há mais de um século ali encontram as portas do paraíso! Em parte é por estes choques que tanto gosto de me aventurar nesta região 🙂
      Eu é que agradeço pela leitura sempre atenta e comentários que acrescentam sempre brilhantes reflexões! Um abraço!

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